quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Carta à Merkel





Ângela,

Não me conheces, mas achei que te devia escrever porque em breve estaremos tão perto que seria estranho se não nos apresentássemos antes. Não espero que me respondas, nem sequer que me cumprimentes ao chegar, mas para que não tenhas dúvidas, achei por bem apresentar-me desde já, para que quando chegares saibas ao que vens.

Como disse, não me conheces, mas eu estarei à tua espera.

Eu sou a criança que vai para a escola sem pequeno-almoço, com meia dúzia de cêntimos no bolso (quando há!), que almoço um pão com queijo no supermercado ao lado da escola. Eu sou o rapaz que anda uma hora a pé para a secundária porque o Governo me tirou o apoio ao passe escolar e os meus pais não têm dinheiro para pagar transportes para mim e para a minha irmã. Eu sou a rapariga que vês através do vidro esfumado do teu carro do corpo diplomático a correr da faculdade para um emprego mal pago, com horários desumanos, a fazer esforços além das minhas forças, para pagar os estudos porque as propinas não param de aumentar e já ninguém tem bolsa neste país. Eu sou o licenciado que entrava no avião enquanto saías do teu para emigrar à procura de um sítio qualquer onde tenha um emprego. Eu sou a jovem trabalhadora que acumula estágios, falsos “recibos verdes” e contratos a prazo há anos, apesar de trabalhar há anos num mesmo sítio e desempenhar funções de carácter permanente. Eu sou o homem que vagueia desesperado pelas ruas, sem perspectiva, cansado de ver as portas a fecharem-se sem encontrar um emprego há anos. Eu sou a mulher que tem de escolher entre comer duas refeições ou dar as vacinas todas aos meus filhos. Eu sou o trabalhador que no dia em que recebe sabe que não vai ter dinheiro para pagar todas as contas que tem até ao fim do mês. Eu sou a que ficou sem casa por não ter dinheiro para pagar a prestação. Eu sou o pai, a mãe, o avô, a avó que sustenta de novo filhos e netos que viram negada a sua emancipação e voltaram à minha dependência. Eu sou o doente a quem roubaram a possibilidade de se tratar. Eu sou o reformado a quem a pensão não chega para viver.

Eu sou isso e muito mais. Sei que não te devo parecer estranho, porque também lá para os teus lados os há (e muitos) como eu, à custa de quem tu e os senhores do sistema por quem dás a cara vivem no luxo e na fartura a acumular lucros aos milhares de milhões. Desses também temos por cá, dos que exigem daqueles como eu que não tenha vida, que não tenhamos dinheiro para mandar cantar um cego, que não tenhamos presente nem futuro e depois têm lucros tão grandes que a numeração que se aprende na escola nem chega para saber exactamente quantos zeros é que são.

É por isso que quero é que tu e a troika, seja a que trazes contigo, seja a que vens cá dar festinhas no dorso, se lixem.

Estou farto de viver à rasca e estimo bem é que voltes para donde vieste e, de preferência, leves contigo os que me andam a enterrar o futuro, a atulhar-me no lixo deles, enquanto eles brindam nos seus copos de cristal.

Mas Ângela, antes de ires, agacha-te e junta-te a esses teus fiéis súbditos que rasgam no chão os seus joelhos para te beijar a mão ao passares. Com eles, esses colaboracionistas, que abrem as portas do país a quem nos vem roubar, apanha um por um os pedaços desse dito “memorando de entendimento”, que cá por mim se não for rasgado, ele só serve mesmo para fazer de calço debaixo do pé de alguma mesa manca cujo baloiçar faz a escrita torta ou a sopa pender para um dos lados do prato!

Por fim, e para que não me acuses de indelicadeza, deixo-te para o caminho de volta um pedacinho da nossa cultura: cada vez que prometas que as coisas vão mudar, que as instituições vão ser reformadas, que isto vai ficar melhor à custa da nossa miséria, que isto é que é moderno e inevitável, lembra-te de um poeta português que dizia “Vós que lá do vosso império. Prometeis um mundo novo, Calai-vos, que pode o povo. Qu'rer um mundo novo a sério.”

Até dia 12. Eu serei o da pancarta na mão, o do megafone estridente, o que não se resigna e faz tanto ruído que não te dará por onde fugir sem teres de me ouvir.

Vemo-nos por aí,

A Ana Sofia,
o Pedro Guilherme Reis,
a Vanessa Lopes,
o João Alves,
o Elísio Sousa,
o Rui Magalhães,
o João Gonçalves,
a Cristina Sequeira,
entre muitos, muitos outros (...)